domingo, 13 de novembro de 2011

O poder da Oração

por Carlos Orsi*



Em 1877, a economia dos Estados Unidos se viu diante de um risco muito concreto de colapso, causado não por banqueiros – mudam os séculos, mudam as ameaças – mas por gafanhotos. Em Minnesota – até os dias de hoje um dos principais centros de produção de cereais do país –, entomologistas haviam detectado a presença de ovos de grilos e gafanhotos em 129.500 dos 207.100 quilômetros quadrados do Estado. O perigo de uma praga estadual que acabasse sendo devastadora para a produção de alimentos – e para os cofres – da nação era real e imediato.

Cada fêmea de gafanhoto põe cerca de 20 casulos de ovos nos campos durante o outono. Cada casulo contém cerca de 150 filhotes de gafanhoto. Com milhões de ovos cobrindo mais de 60% do Estado, uma primavera quente, oferecendo condições adequadas para o desenvolvimento dos insetos, faria com que trilhões de gafanhotos famintos surgissem dos ovos, prontos para devorar toda a vida vegetal de Minnesota e, com ela, boa parte da safra nacional de grãos.

A praga de gafanhotos era um desastre esperando para acontecer. Uma catástrofe anunciada diante da qual fazendeiros e autoridades do Estado se viam impotentes, como se fossem passageiros de um trem desgovernado. Para piorar as coisas, o início de abril – mês em que começa a primavera do hemisfério norte – chegou quente e ameno.

A pedido dos agricultores desesperados, o governador John Pillsbury declarou que 26 de abril seria um dia estadual de jejum e oração. A medida causou polêmica e foi denunciada por intelectuais como um “descrédito para a inteligência” do povo do Estado. Os religiosos, por sua vez, agarraram-se à oportunidade, realizando missas, vigílias e cultos. O dia 26 de abril foi quente e ensolarado. Mas, à meia-noite de 26 para 27, o tempo fechou e uma chuva gelada começou a cair sobre a maior parte de Minnesota. Essa chuva logo se transformou em neve. Durante todo o dia 27, e também no dia 28, a tempestade continuou a cair, alternando chuva, neve e granizo. Ao fim da tormenta, os fazendeiros descobriram que os gafanhotos tinham sido abatidos pelo frio no momento em que saíam dos ovos. Os poucos insetos sobreviventes simplesmente foram embora, sem atacar a lavoura. Uma capela foi construída para celebrar a ocasião.

Impressionante como é, o fato histórico, pouco conhecido fora dos Estados Unidos, representa o tipo de relato a que cientistas se referem como “anedótico”. Nesse contexto, a palavra não faz referência a eventos engraçados, picantes ou jocosos, mas remete à raiz grega, anékdotos, “coisa não publicada”: o registro de uma experiência individual, um dado isolado que pode até ser interessante em si mesmo, mas que, por falta de contextualização adequada e de tratamento estatístico, não serve como base para conclusões mais amplas.

Resumindo, o anedótico pode talvez indicar uma verdade, mas não serve para provar uma verdade. Muitas superstições têm base anedótica, como o apego a gravatas, cuecas, sapatos ou joias “da sorte”.

Para muita gente, a história real da praga de gafanhotos de Minnesota pode parecer uma prova cabal de que orações funcionam e de que preces são atendidas. Mas será mesmo? E se os moradores do Estado não tivessem orado no dia 26 de abril de 1877, ou se, em vez de rezar, tivessem sacrificado pombos a Zeus, cabras a Baal, virgens a Lúcifer? O resultado meteorológico teria sido diferente? As massas de ar teriam se comportado de outra forma? É verdade que não temos como realizar o experimento – para felicidade dos pombos, das cabras e das virgens –, mas também é verdade que a eficácia da oração é tida como certa por leigos e clérigos de praticamente todos os sistemas religiosos já criados pelo homem.

Pondo de lado o aspecto suspeito dessa unanimidade – o fato de o pagão ter tanta confiança em suas orações quanto o cristão deveria fazer algumas pessoas pararem para pensar –, temos ainda o testemunho da experiência individual: você certamente conhece uma pessoa (você talvez seja uma pessoa) que tem uma fantástica história de prece atendida para contar. Como os fazendeiros de Minnesota.

Histórias de pequenos milagres pessoais obtidos por meio da oração abundam, principalmente, nos programas religiosos da televisão. Muito menos destaque, porém, recebem – na mídia e na memória individual – as orações que não são atendidas. Mas às vezes um ou outro caso vem à tona: em 2009, o jornal O Globo noticiou que um ex-fiel da Igreja Universal do Reino de Deus estava processando a denominação porque uma prece para que ganhasse uma ação trabalhista no valor de R$ 1 milhão não foi ouvida por Jesus.

Identificar preces não atendidas é especialmente difícil porque, primeiro, as pessoas tendem a não falar sobre elas; segundo, porque num mecanismo de “encaixe retroativo”, como o descrito no capítulo anterior, resultados ambíguos ou negativos podem acabar sendo interpretados como positivos. Por exemplo, um homem reza para que uma mulher aceite casar-se com ele; ela recusa; ele depois conhece outra mulher, com quem se casa e é feliz. Essa pessoa pode considerar que sua prece foi atendida, e de uma forma ainda melhor do que esperava, já que Deus impediu que cometesse um erro e pôs a “mulher certa” em seu caminho.

Casos não ambíguos geralmente envolvem situações extremamente dramáticas – como o de pessoas que rezam para não morrer durante um desastre –, e tendem a ser bastante problemáticos para os defensores do poder da prece. Fato que já havia sido notado pelo poeta grego Diágoras de Melos, também conhecido como o Ateu, que viveu no século 5 AEC. Diz uma história que Diágoras foi levado por um amigo para ver imagens votivas deixadas por pessoas que agradeciam aos deuses por terem sobrevivido a tempestades no mar. A resposta de Diágoras: “E onde estão as imagens das pessoas que sofreram naufrágio e morreram nas ondas?”

Em seu livro É Isto um Homem?, o químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987) comenta a oração que ouviu em Auschwitz, quando um velho, chamado Kuhn, rezou dando graças por ter escapado da “seleção” em que os nazistas escolhiam quem iria para as câmaras de gás: “Kuhn está fora de si. Ele não vê Beppo, o grego, no catre junto a si, Beppo que tem 20 anos de idade e vai para a câmara de gás depois de amanhã e sabe disso? (…) Se fosse Deus, eu cuspiria na prece de Kuhn.”

Numa nota menos trágica, o escritor e filósofo francês Voltaire (1694-1778) apresentava um ponto semelhante: o que acontece, queria saber ele, se eu rezar por chuva e meu vizinho, por sol?

– A estatística da oração –
A primeira tentativa científica de avaliar o poder da prece foi empreendida pelo britânico Francis Galton (1822-1911) e publicada em 1872, cinco anos antes da praga de Minnesota. Galton, um parente de Charles Darwin, é pouco lembrado hoje em dia e, geralmente, quando seu nome é mencionado isso não ocorre de forma muito elogiosa. Seu papel no desenvolvimento da eugenia – a ideia de “aperfeiçoar” a raça humana por meio da manipulação e do controle da hereditariedade – não é exatamente um bom cartão de visitas, em vista do que se passou depois, no século 20.

Mas reduzir Galton a um mero instigador do racismo pseudocientífico é injusto. Ele foi também um pioneiro no uso de impressões digitais para a identificação de criminosos, da meteorologia – o primeiro mapa meteorológico publicado num jornal foi elaborado por Galton, e impresso na edição de 1° de abril de 1875 do Times de Londres – e da criação de técnicas estatísticas para análise de dados. E é o Galton estatístico que nos interessa aqui. Em seu artigo “Statistical Inquiries into the Efficacy of Prayer” (Investigações Estatísticas da Eficácia da Prece), ele oferece uma série de sugestões sobre como validar a ideia de que orações são úteis.

O plano geral, adotado até hoje em vários campos da pesquisa científica, é comparar a população de interesse com um grupo de controle – no caso, pessoas que rezam (ou que são objeto de oração) com pessoas de caráter mais secular ou que recebem menos preces. Entre as comparações sugeridas por Galton estão: naufrágios de navios de missionários versus de navios de traficantes de escravos; tempo de recuperação de doentes religiosos e de doentes ímpios; mortalidade infantil em famílias religiosas e em famílias seculares – neste caso, informa o autor, o cotejamento das mortes de bebês anunciadas no jornal Record, religioso, e no mais mundano Times não revelava nenhuma diferença numérica perceptível.

Mas a parte mais famosa do artigo de Galton é a comparação da longevidade de membros de famílias reais com a de outros grupos de pessoas ricas. Era preciso manter a comparação restrita aos ricos para controlar outras variáveis – por exemplo, o acesso ao atendimento médico de qualidade (ou o que passava por isso entre 1758 e 1843, o período sob análise). Galton também só levou em conta as mortes naturais, excluindo da estatística os casos de acidente e de violência.

Por que a famílias reais? Porque, nas monarquias em que não há separação formal entre Igreja e Estado, a população reza pela saúde do rei na maioria dos serviços religiosos. Explica Galton: “A prece pública pelo soberano de cada Estado, protestante ou católico, é e tem sido no espírito da nossa, ‘Dê-lhe saúde e vida longa’.” Essa prece, erguendo-se aos céus a partir de praticamente todas as igrejas e catedrais da Europa no século 19, funcionava? Não. A idade média em que a morte alcançava os homens de famílias reais, no período de interesse, era de 64,04 anos, de fato a menor entre todas as classes afluentes. O grupo mais longevo era o dos proprietários rurais (70,22 anos).

A abordagem de Galton atraiu – como atrai até hoje – inúmeras críticas. A maioria delas pode ser resumida na queixa de que estudos do tipo tentam “confinar Deus ao laboratório”. Mas isso não impediu, no entanto, que nos quase 140 anos desde a publicação original, novas tentativas de medir o poder da prece por meio da estatística fossem feitas. Centenas, ou possivelmente milhares, de estudos já foram realizados a respeito, boa parte deles com o patrocínio de grupos de interesse religioso, e os que revelam correlações positivas entre prece, religiosidade e saúde costumam receber ampla divulgação na mídia.

O terreno, no entanto, é pantanoso. Embora duas revisões da literatura médica realizadas em 1998 e 2000 tenham apontado uma ligação entre prática religiosa e melhores condições de saúde, uma análise mais aprofundada, feita em 2002, mostrou que a maioria dos estudos com resultados positivos continha erros estatísticos ou metodológicos que invalidavam a conclusão. Por exemplo: um estudo publicado em 1988 mostrava que freiras tinham pressão arterial menor que o grupo de controle . Mas qual o ponto mais relevante aí – intervenção divina ou fato de que as freiras que participaram do estudo viviam em clausura, afastadas do estresse do mundo moderno, há vinte anos?

Neste século, os dois estudos sobre saúde e prece que mais repercutiram foram o trabalho de Rogerio Lobo, Daniel Wirth e Kwang Cha, “Does prayer influence the success of in vitro fertilization-embryo transfer?” (“A prece influencia o sucesso da transferência de embrião na fertilização in vitro?”), sobre o efeito da oração no sucesso da inseminação artificial, publicado em 2001 no Journal of Reproductive Medicine; e o STEP – Study of the Therapeutic Effects of Intercessory Prayer (“Estudo dos efeitos terapêuticos da Prece Intercessória”), publicado em 2006, que representou a culminação dos esforços de seis diferentes centros acadêmicos, envolvendo quase 2 mil pacientes.

– Rezando pelos embriões –
O trabalho de Lobo, Wirth e Cha veio a público um mês após os atentados de 11 de setembro e, de acordo com a nota publicada no New York Times, os próprios autores mostraram-se surpresos com o resultado. Os três pesquisadores, sob a chancela da Universidade Columbia, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, afirmavam que mulheres inférteis que recebiam orações tinham o dobro da chance de engravidar via inseminação artificial, na comparação com mulheres que não contavam com o benefício da prece. A pesquisa envolvera 199 mulheres que tinham procurado um hospital de Seul, na Coreia do Sul, para tentar engravidar, entre 1998 e 1999. Das mulheres, 100 foram selecionadas, de forma aleatória, para receber orações de cristãos que moravam nos Estados Unidos, Canadá e Austrália; as outras 99 foram mantidas como controle. A taxa de gravidez no grupo que recebeu oração chegou a 50%, contra 26% no de controle. Se confirmado, o resultado seria nada menos que milagroso – além de uma fonte de constrangimento para a Igreja Católica, já que Deus estaria dando sinais inequívocos de apoio a um tipo de procedimento considerado imoral por seus porta-vozes em Roma.

Mas defeitos no estudo foram apontados quase que imediatamente após sua publicação. Primeiramente foi levantada a questão ética – as mulheres coreanas não sabiam que estavam sendo usadas como cobaias – e, depois, quanto ao protocolo do trabalho: os voluntários que oravam tinham sido divididos em três grupos, cada um com um tipo de prece diferente a fazer. Em alguns casos, a oração recomendada não pedia o sucesso da fertilização, mas apenas que se fizesse a “vontade de Deus”. Como comentou, em 2004, o especialista em ginecologia e obstetrícia Bruce Flamm, “o protocolo do estudo é tão confuso e convoluto que não pode ser levado a sério”.

Questões quanto à credibilidade dos autores também não demoraram a surgir. Rogerio Lobo havia sido citado pelo New York Times como principal responsável pelo trabalho, mas quando as críticas quanto à ética do estudo surgiram, a Universidade Columbia informou que ele só havia sido informado da pesquisa mais de seis meses após sua conclusão. Posteriormente, em 2004, Lobo fez um pedido formal para que seu nome fosse retirado da lista de autores do estudo, afirmando que tinha sido incluído ali por “erro”, isso a despeito de ter dado entrevistas à mídia como o principal autor da descoberta, nos idos de 2001.

Outro autor, Daniel Wirth, não era sequer médico, mas um advogado que também possuía um título acadêmico em parapsicologia. Em novembro de 2004, Wirth foi condenado a cinco anos de prisão, depois de confessar a autoria de uma série de fraudes praticadas ao longo de duas décadas e envolvendo milhões de dólares. O terceiro autor do estudo, Kwang Cha, reconheceu que Wirth tinha sido o criador do estranho esquema de grupos de orações e preces diferenciadas, e tinha ficado encarregado de supervisionar esses grupos.

O Journal of Reproductive Medicine nunca se retratou do estudo – prática adotada por periódicos científicos quando um trabalho publicado se revela incorreto ou fruto de fraude. Mas os problemas metodológicos apontados, somados à revelação do caráter de Wirth, à remoção do nome de Lobo e à retirada do endosso da Universidade Columbia lançaram um compreensível manto de ridículo e descrença sobre as conclusões apresentadas.

– Fé no coração –
Sob praticamente todos os aspectos, o estudo STEP, publicado no American Heart Journal, em abril de 2006, foi o inverso do polêmico trabalho sobre fertilização in vitro da Coreia do Sul, descrito acima. Citado pelo New York Times como “a investigação mais rigorosamente científica sobre se preces podem curar doenças”, o trabalho envolveu pesquisadores de seis centros de estudos, avaliando 1.802 pacientes. Teve entre seus autores um padre católico, dois pastores batistas e cerca de uma dezena de médicos.

O STEP custou US$ 2,4 milhões, pagos pela Fundação John Templeton, uma organização que descreve a si mesma como “um catalisador filantrópico para descobertas relacionadas às Grandes Questões do propósito da vida humana e da realidade última”. A Fundação mantém ainda o Prêmio Templeton, concedido anualmente a pessoas que tenham “dado uma contribuição excepcional à afirmação do caráter espiritual da vida”. Esse prêmio, em valor monetário, é sempre maior que o famoso Prêmio Nobel.

No estudo, pessoas submetidas a cirurgias coronárias foram divididas, de forma aleatória, em três grupos: 604 pacientes receberam orações depois de serem informados de que poderiam ou não ser alvo de preces; 597 não receberam orações, depois de ouvirem a mesma informação; enquanto outros 601 foram avisados de que seriam alvo de oração, e receberam as preces. Os médicos e enfermeiros envolvidos no cuidado direto dos pacientes não foram informados de quem receberia ou não preces, para evitar que os profissionais se mostrassem, ainda que inconscientemente, mais (ou menos) atenciosos com membros de um ou outro grupo.

Rezaram pela recuperação sem complicações dos pacientes selecionados três equipes de religiosos, sendo duas católicas – freiras carmelitas e beneditinas – e uma protestante – do grupo Unidade Silenciosa. Foi usada uma prece padronizada. As orações tiveram início na véspera de cada cirurgia e foram repetidas diariamente durante 14 dias consecutivos. O estudo foi realizado ao longo de vários anos. O resultado final foi uma surpresa, tanto para os religiosos – que provavelmente esperavam que os pacientes alvo de oração tivessem uma recuperação melhor que os demais – quanto para os céticos, que acreditavam que os três grupos acabariam revelando o mesmo tipo de evolução pós-operatória.

O que o STEP revelou foi que, entre os pacientes que não sabiam se receberiam ou não preces, a taxa de complicações foi praticamente idêntica, embora os alvos de oração tenham se saído ligeiramente pior: 52% desses apresentaram dificuldades pós-operatórias, contra 51% no outro grupo. Já no grupo de pacientes que tinha certeza de que era alvo de oração, a taxa complicações foi significativamente maior: 59% deles sofreram dificuldades após a cirurgia.

Essa conclusão se revelou um tanto quanto embaraçosa para os religiosos envolvidos. Um dos autores, o padre Dean Marek, disse que o resultado talvez pudesse ser atribuído “às limitações do estudo”. Ao New York Times, o padre Marek afirmou que “ouvem-se toneladas de histórias sobre o poder da oração, e não duvido delas”. O sacerdote acrescentou ainda que o resultado, mesmo se válido, só se refere a orações feitas por desconhecidos dos pacientes, e não pelo próprio paciente ou por parentes e amigos.

Críticas ao caráter “reducionista” da pesquisa – “má religião e má ciência”, nas palavras de um comentarista – também não demoraram a aparecer. Seria curioso ver, no entanto, como muitos dos algozes do reducionismo científico reagiriam se os dados tivessem indicado um forte efeito positivo das preces. A interpretação mais razoável do resultado – excluindo-se, por exemplo, a hipótese de Deus ter se irritado com a enxurrada de orações e decidido castigar os pacientes – foi elaborada pelo médico cardiologista Charles Bethea, um dos coautores do estudo. O médico especulou que o fato de os pacientes saberem que seriam alvo de orações pode tê-los deixado nervosos, estressados e inseguros. Disse ainda que esses pacientes podem ter pensado: “Será que estou tão doente que precisaram chamar até a turma da reza?”

Seja como for, fica a constatação de que o melhor estudo sobre o poder da oração já realizado concluiu que preces feitas por desconhecidos – mesmo desconhecidos de profunda vocação religiosa, como freiras carmelitas – para apresentar petições à divindade são, na melhor das hipóteses, inúteis. O que ecoa, curiosamente, o levantamento feito por Francis Galton, no século 19.

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* Este post é um capítulo inédito de O Livro dos Milagres, que está sendo lançado este mês pela editora Vieira & Lent. O objetivo da obra é facilitar o acesso do público às conclusões científicas acerca de eventos tidos como milagrosos, com explicações, contextualização, fontes e, sempre que possível, um pouco do ambiente histórico que cercou cada caso, para ajudar na compreensão. Clique aqui para comprar o livro.

domingo, 30 de outubro de 2011

Devaneios de Ediel Araújo

Devaneios de Ediel Araújo

Sonhar acordado,
Acordar sonhando.
Pensando na vida,
Suave cantando.

Vida que passa,
Nela me encanto.
Com gosto de doces,
Olhar de encanto.

Corpos, carinhos, cheiro, desejos.

Um beijo não dado,
Um abraço apertado,
Um cheiro na testa,
Uma mordida no queixo.

sábado, 10 de setembro de 2011

Belo texto do Zeca Baleiro (ISTO É)

Zeca Baleiro
Cantor e Compositor - Colunista Mensal

Maranhão, engenhosa mentira
Não me espantará que num futuro próximo o Maranhão venha a ser chamado de "Uganda brasileira"

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O Maranhão é um Estado do Meio Norte brasileiro, um preciosismo para nomear a região geograficamente multifacetada que é ponto de interseção entre o Nordeste e a Amazônia. Com área de 330 mil km2, pleno de riquezas naturais, tem fartas agricultura e pecuária, uma culinária rica e diversa e uma cultura popular exuberante. Não obstante tudo isso, pesquisa recente coloca o Estado como o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do País, atrás apenas de Alagoas.

Sou maranhense. Nasci em São Luís, capital do Estado, no ano de 1966, mesmo ano em que o emergente político José Sarney assumiu o governo estadual, sucedendo o reinado soberano do senador Vitorino Freire, tenente pernambucano que se tornou cacique político do Maranhão, a dominar a cena estadual por quase 40 anos. De 1966 até os dias de hoje, são outros 40 anos de domínio político no feudo do Maranhão, este urdido pelo senador eleito pelo Amapá José Sarney e seus correligionários, sucedâneos e súditos, que gerou um império cujo sólido (e sórdido) alicerce é o clientelismo político, sustentado pela cultura de funcionalismo público e currais eleitorais do interior, onde o analfabetismo é alarmante.

O senador José Sarney, recém-empossado presidente do Senado em um jogo de caras barganhas políticas, parecia ter saído da cena política regional para dar lugar a ares mais democráticos, depois de amargar a derrota da filha Roseana na última eleição ao governo do Estado para o pedetista Jackson Lago. Mas eis que volta, por meio de manobras politicamente engenhosas e juridicamente questionáveis, para não dizer suspeitas, orquestrando a cassação do governador eleito, sob a acusação de crime eleitoral, conduzindo a filha outra vez ao trono de seu império. Suprema ironia, uma vez que paira sobre seus triunfos políticos a eterna desconfiança de manipulações eleitoreiras (a propósito, entre os muitos significados da palavra maranhão no dicionário há este: "mentira engenhosa").

Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disparou frase cruel: "Não vamos transformar o Brasil num grande Maranhão." A frase, de efeito, aludia a uma provável política de troca de favores praticada pelo Planalto atualmente - segundo acusação do ex-presidente -, baseada em jogo de interesses regionais tacanhos e tráfico de influências. Como alguém nascido no Maranhão, e que torce para que o Estado alcance um lugar digno na história do País (potencial para isso não lhe falta, afinal!), lamento o comentário de FHC, mas entendo a sua ironia, pois o Maranhão tornou-se, infelizmente, ao longo dos tempos, um emblema do que de pior existe na política brasileira. Não é de admirar que divida o ranking dos "piores" com Alagoas, outro Estado dominado por conhecidas dinastias familiares.

Em seus tempos de apogeu literário, São Luís, a capital do Maranhão, tornou-se conhecida como a "Atenas brasileira". Mais recentemente, pela reputação de cidade amante do reggae, ganhou a alcunha de "Jamaica brasileira". Não me espantará que num futuro próximo o Maranhão venha a ser chamado de "Uganda brasileira" ou "Haiti brasileiro". A semelhança com o quadro de absoluta miséria social a que dois célebres ditadores levaram estes países - além do apaixonado apego ao poder, claro - talvez justificasse os epítetos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Educação e novas Tecnologias

Nos dias atuais, em que podemos perceber cada vez mais as chamadas comunidades virtuais, onde todos encontram-se interconectados. Nós professores não podemos ficar de "fora da onda". Nos aproveitando do ensejo e fazendo com os nossos alunos que passam horas e horas em frente ao computador, com bate papos e conversas improdutivas, passem a aproveitar todo esse tempo e comecem de fato a produzir conhecimento. Assim aceito sugestões para melhorar minha prática em sala de aula, assim como, sugestões para este blog.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

DEBATE SOBRE O QUE É E COMO SURGE A FIGURA DO POLÍTICO


3 DEBATE SOBRE O QUE É E COMO SURGE A FIGURA DO POLÍTICO
As reflexões a seguir são feitas, a partir da leitura do diálogo O Político de Platão. O debate acontece entre Sócrates, Teodoro, o Estrangeiro e Sócrates, o jovem. Já no início do debate Teodoro comenta: - Pois em breve, hás de dever-me uma gratidão três vezes maior, ao completarem eles o retrato do político, e a seguir o do filósofo. (O político, 257 a). A partir dessa primeira exposição sobre o político, passa a classificar a ciência entre: ciência prática e ciência puramente teórica. O diálogo se desenrola. Platão comenta pela boca do estrangeiro:
ESTRANGEIRO
- Por outro lado, é evidente também que um rei para manter-se no poder não recorre à força das mãos ou ao vigor de seu corpo, mas à força de sua inteligência e de alma.
(O político, 209 c)
Então pergunta, direcionando o debate para a questão da ciência política e do Político como aproximação da ciência real e do homem real, diz o ESTRANGEIRO - Poderemos fazer então da ciência política e do político, da ciência real do homem real uma só unidade?(209 d)
Obviamente pode-se perceber, ao longo do discurso, o embate onde qual é o lugar do Rei: deverá ser este colocado, enquanto aquele que detém a ciência (arte) critica, desempenhando o papel de simples espectador ou como aquele que detém a arte diretiva? Pois, na realidade ele ordena como senhor e como tal deverá ser obedecido.
Então ele comenta que não deve-se entender o Político como criador de seres, tal como o lavrador que cuida do seu boi ou do tratador que cuida do seu cavalo, porém, como o criador de todos os cavalos e de todos os bois. Assim, o coloca como um o indivíduo de responsabilidades maiores.
Passando a classificar os animais terrestres entre bípedes e quadrúpedes, entre os bípedes destacam-se aqueles com e sem penas, o homem que cosegue fazer tais defenças, revela-se enquanto artista pastoredor de homens. Com isto, conseguiria-se  descobrir o homem político e o real colocando-o como condutor e entregando-lhe como direito, as rédeas do Estado, por serem homens que possuem a ciência necessária. Assim, Platão aponta enfim o que é a arte do Político: esta é colocada como a arte de dirigir os homens (267 b). Diz pela boca do estrangeiro:
ESTRANGEIRO
- Entre as muitas formas da arte de pastoerar encontra-se uma: a política, e vemos qual é o seu rebanho.
SÓCRATES, O JOVEM
- Sim.
ESTRANGEIRO
- A discussão não a conceituou como criação de cavalos ou quaisquer outros animais, e sim como ciência que cuida de homens que vivem em comunidade.
(O Político, 267 c)
 Então compara o político com o tratador do rebanho, pois, a este cabe alimentá-los, medicá-los, escolher o coito, demonstrando ainda que tanto na criação quanto no nascimento, acaba por se tornar o único parteiro competente. Assim, na medida que seus animais participam da sedução da música, nenhum outro é capaz de acalmá-los e de consolá-los por meio de sons. Sabendo ainda executar exatamente a música que seu rebanho gosta, por intermédio de instrumento ou mesmo só pela voz. Nesse sentido, os pastores (Reis) de homens participam da mesma ideia.
Então Platão recorre, para poder explicar a origem de toda essa discussão, ao mito de Atreu e Tiestes que narra as mudanças ocorridas no movimento dos astros. Alterado por deus devido ao terrível crime de Atreu. Além disso retoma também a ideia sobre o que se fala de Crono, no tempo deste, os homens nasciam da terra e não uns dos outros. Em alguns momentos eram os próprios deuses que regiam o curso do universo e presidiam as revoluções e grandes mudanças. Outros no entanto, deixavam que seguisse seu próprio destino. Segundo o filósofo, o movimento de retrocesso faz parte do processo de natureza. Como afirma pela fala do estrangeiro:
- Somente ao que há de mais divino convém conservar as mesmas qualidades, permanecer o mesmo estado e se sempre o mesmo. A natureza corpórea não participa dessa oredem. O que chamamos céu e mundo. O que chamamos céu e mundo, apesar dos muitos dotes esplêndidos que recebeu de seu criador, está preso à sorte do corpo. Por isso é impossível que fique eternamente alheio à mudança e, na medida de suas forças, move-se no mesmo espaço, com um movimento mais idêntico e mais uno de que é capaz. Eis por que foi animado do movimento de retrocesso circular que dentre todos é o que menos o afasta de seu movimento primitivo. Ser a causa contínua de sua própria rotação não é possível senão ao que rege tudo aquilo que se move. Esse ser, porém, não pode mover-se, ora num sentido, ora no sentido contrário. Por estas razões todas não podemos afirmar que o mundo seja a causa contínua de sua própria rotação nem dizer que toda ela, sem interrupção, é dirigida por um deus nas suas revoluções contrárias e alternadas e muito menos que ela se deve a duas divindades cujas vontades se opõem. Mas, como dizia há pouco, a única solução que resta é que umas vezes ela seja dirigida por uma ação estranha e divina e assim, recebendo uma nova vida, recebe, igualmente de seu autor, uma nova imortalidade, que outras vezes, abandonado a si mesmo, caminhe em retrocesso durante milhares e milhares de períodos, pois que a sua grande massa se move num perfeito equilíbrio sobre um eixo extremamente pequeno. (O Político, 269 e)
Assim, nos parece muito claro que o destino dos homens estava diretamente interligado à vontade dos deuses. Porém, durante tais ocasiões o filósofo deixa claro que a morte provoca as maiores devastações entre os seres vivos, reduzindo, em última instância o gênero humano a um pequeno número de sobreviventes. Nesse sentido, ao realizar-se a inversão do movimento atual, os que se mantém vivos, acabam por sofrerem toda espécie de estranhos e insólitos acidentes. Entre os quais aponta um como sendo o mais grave:
ESTRANGEIRO
— Todos os seres vivos, então, pararam na idade em que estavam e tudo o que era mortal já não contemplou mais o espetáculo de um envelhecimento gradual. Depois, progredindo em sentido contrário, cresceram em juventude e frescor. Os cabelos brancos dos t velhos tornaram-se pretos.
Naqueles em que a barba já era crescida as faces se alisaram e cada um retornou à flor da mocidade. Os corpos dos imberbes tornando-se ainda mais tenros e menores, dia por dia, noite por noite, voltaram afinal ao estado de crianças recém-nascidas, a elas semelhantes em corpo e alma, e prosseguindo, após o seu declínio, acabavam por desaparecer completamente. Os cadáveres dos que naquele tempo haviam padecido morte violenta sofreram as mesmas transformações, e com tal rapidez que em poucos dias deles nada restava.
(O Político, 270 e / 271 a)
Então Sócrates, o jovem questiona: — E como então, naquele tempo, se dava o nascimento dos seres vivos, caro Estrangeiro? Como se procriavam uns aos outros? (271 a). E o estrangeiro responde apontando como foi discutido até então, na época em destaque, segundo sua própria natureza, que não podiam procriarem-se uns aos outros. Tal raça era nascida do seio da terra, e os personagens guardavam essas lembranças, chegando até nós pelos antepassados. Homens estes imediatamente surgidos ao fim deste ciclo antigo como é explicado na citação a seguir:
A meu ver, impõe-se pensar assim: desde que os anciãos voltavam a ser crianças, os mortos sepultados na terra conseqüentemente deveriam reconstituir-se e voltar à vida, levados por este movimento de volta que fazia com que as gerações caminhassem em sentido oposto; e sendo que assim nasciam, necessariamente, do seio da terra, dela receberam o seu nome e a sua história; quando não foram dirigidos por um deus para outros destinos. (O Político, 271 c)
Surge então a dúvida: a vida no tempo de Crono pertencia a outro ciclo ou a este, uma vez que, as mudanças no sentido do curso, ocorreram em ambos os ciclos. Então aparece a figura dos pastores divinos mostrando uma possível saída quanto a este embate, o estrangeiro responde que tais fatos pertenciam a um ciclo precedente e que, portanto:
Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exercia, primeiramente, tal como hoje, sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente, pois todas as partes do mundo estavam distribuídas entre os deuses encarregados de governá-las. Aliás, os próprios animais então se dividiam em gêneros e rebanhos sob o bordão de gênios divinos e cada um deles provia, plenamente, todas as necessidades de suas ovelhas não havendo feras selvagens, nem acontecendo que uns devorassem a outros, nem guerras, sem desentendimentos; e eu poderia contar, ainda, milhares de outros benefícios a esse tempo dispensados ao mundo. Mas, voltando ao que se refere aos homens que, então, não tinham preocupação alguma para viver, esta é a explicação: era o próprio Deus que pastoreava os homens e os dirigia tal como hoje, os homens (a raça mais divina) pastoreiam as outras raças animais que lhes são inferiores. Sob o seu governo, não havia Estado, constituição, nem a posse de mulheres e crianças, pois era do seio da terra que todos nasciam, sem nenhuma lembrança de suas existências anteriores. Em compensação tinham em quantidade os frutos das árvores e de toda uma vegetação generosa, recebendo-os, sem cultivá-los, de uma terra que, por si mesma os oferecia. Nus, sem leito, viviam no mais das vezes ao ar livre, pois as estações lhes eram tão amenas que nada podiam sofrer, e por leitos tinham a relva macia que brotava da terra. Era esta, Sócrates, a vida que se levava sob o império de Crono; e quanto à outra, a de agora, e que, ao que se diz, está sob o império de Zeus, tu a conheces por ti mesmo. Podes dizer qual delas é a mais feliz? (O Político, 272 a e b)
Como apontado pelo discurso acima, acerca de qual dos homens era o mais feliz, se o que vivia no reinado de Crono ou os outros que estavam sob o império de Zeus. O interlocutor responde:
                                                ESTRANGEIRO
— Se os tutelados de Crono, em seus lazeres que eram muitos, e tendo a faculdade de entreter-se, não apenas com homens, mas também com animais, se usaram de todas essas vantagens para praticar a filosofia, conversando com os animais e entre si, e interrogando a todas as criaturas para ver se haveria uma que, melhor dotada, enriquecesse, com uma descoberta original, o tesouro comum dos conhecimentos humanos, fácil seria dizer que eles eram infinitamente mais felizes do que os homens do presente. Se, porém, apenas se ocuparam em fartar-se de alimentos e bebidas, não procurando contar ou ouvir de outros e dos animais senão fábulas, tais como as que hoje se contam a seu respeito, a resposta seria fácil, creio.
( O Político, 272 d)

O MUNDO ABANDONADO À PRÓPRIA SORTE


3.1 O mundo abandonado à própria sorte
Segundo o pensamento platônico, assim que se completou o tempo determinado para todas as coisas e chegando a hora em que deveriam ocorrer as mudanças, a raça nascida da terra desapareceu completamente e cada alma ao completar seu ciclo de nascimento, retorna à terra tantas vezes como sementes como determinara a sua própria lei. Então aquele que Platão chama de Piloto do universo, abandona, por assim dizer, a direção de tudo e encerra-se em seu posto de observação. Logo pela tendência natural, passa a mover-se em sentido contrário. Conseqüentemente todos os deuses locais que assistiam a divindade suprema em seu governo, compreendem prontamente o que se passava e também abandonam as partes confiadas aos seus cuidados. Assim:
E o mundo, subitamente mudando o sentido de seu movimento, de começo a fim, provocou, no seu próprio seio, um terremoto violento em que pereceram os animais de toda espécie. Depois, ao fim de um tempo suficiente, terminados os distúrbios e o terremoto, prosseguiu num movimento ordenado o seu curso habitual e próprio, zelando e governando, como senhor, tudo o que havia em seu seio, bem como a si próprio e relembrando, tanto quanto lhe fora possível, as instruções de seu criador e pai, de início, com maior exatidão, mas, ao fim, com crescente enfraquecimento. Esta falta se deveu aos princípios corporais que entraram na sua constituição, aos caracteres herdados de sua natureza primitiva, que comportava uma grande parte de desordem antes de alcançar a ordem cósmica atual. De seu construtor é que recebeu tudo o que tem de belo e de sua constituição anterior decorrem todos os males e todas as iniqüidades que se cometem no céu, e que daí passaram ao mundo, transmitindo-se aos animais. Enquanto desfrutava da assistência de seu piloto que alimentava aos seus, que viviam em seu seio, salvo raros fracassos, só produzira grandes bens; mas uma vez dele desligado, quando o mundo foi abandonado a si mesmo, nos primeiros tempos que se seguiram ainda procurou levar todas as coisas para o melhor; entretanto, com o avançar do tempo e do esquecimento, tornando-se mais poderosos os restos de sua turbulência primitiva que finalmente alcançou o seu apogeu, raros são os bens e numerosos os males que a ele se incorporam, arriscando-se à sua própria destruição e à de tudo o que ele encerra. Por esse motivo, o Deus que o organizou, compreendendo o perigo em que o mundo se encontra, e temendo que tudo se dissolva na tempestade e desapareça no caos infinito da dessemelhança, toma de novo o leme e recompondo as partes que, neste ciclo, percorrido sem guia, tombaram em dissolução e desordem, ele o ordena e restaura de maneira a torná-lo imortal e imperecível.
 (O Político, 273 a, b, c, d, e)

O HOMEM NO ESTADO DE NATUREZA


3.2 O homem no estado de natureza
Assim, para explicar a teoria do Rei, retoma a primeira parte do mito e diz que, quando o mundo passa pelo movimente reverso e desvia-se para o modo atual de geração, a evolução das idades, uma segunda vez, volta ao sentido contrário àquele que então seguia. E percebeu-se que os seres vivos que se haviam reduzidos a quase nada voltaram a crescer e os corpos recém nascidos da terra tornaram-se grisalhos, definharam-se e voltaram à terra. Conseqüentemente todo o resto também, da mesma forma em sentido contrário, amoldando-se e regulando-se à nova evolução do universo; é neste ponto, observa Platão no que se refere especialmente à gestação, ao parto e à criação imitam e seguem o processo geral. Diz:
Já não era possível que o animal nascesse do seio da terra, por um concurso de elementos estranhos; uma vez que o mundo assim se tornara o seu próprio senhor, sujeito a dirigir a sua evolução, também as suas partes deveriam, por uma lei análoga, conceber, dar à luz e criar por si mesmas, na medida em que pudessem. E assim eis-nos agora chegados ao ponto a que se dirigia todo este raciocínio. No que se refere aos outros animais seriam necessárias muitas palavras e muito tempo para dizer qual era então a condição de cada espécie e por que influências ela se modificou; mas relativamente aos homens, esta exposição será mais breve e mais a propósito. Uma vez privados dos cuidados deste deus que os possuía e os mantinha sob sua guarda, cercados de animais dos quais a maior parte era naturalmente feroz, e que se tornaram desde logo selvagens, agora que também eles se viram sem força e sem proteção, os homens se tornaram presas desses animais. Nos primeiros tempos, não tiveram qualquer indústria ou arte; e foi desde este momento de grande abandono, em que seus alimentos deixaram de vir-lhes espontaneamente, e em que não sabiam ainda procurá-los, pois que nenhuma necessidade os havia, até então, obrigado a isso, que, segundo as antigas tradições, nos foram dadas, pelos deuses, lições e ensinamentos indispensáveis: o fogo por Prometeu[1]; as artes por Hefesto[2] e sua companheira; as sementes e as plantas por outras divindades.  
(O Político, 274 c)
Percebe-se então que, tudo o de que a vida humana é feita, nasce desses primeiros passos, quando os homens, como aponta o filósofo, vêem-se privados da vigilância divina devendo conduzir-se  a sós e zelarem por si mesmos, tal como o universo, pois, tudo que estes fazem é imitá-lo e segui-lo, alterando na eternidade e no tempo, estas duas maneiras opostas de viver e nascer.
No diálogo seguinte os interlocutores partem para determinar o gênero de governo que o político exerce sobre a cidade. No entanto, a figura do pastor divino ainda é muito elevada para um rei, nesse sentido, os políticos de hoje, sendo por nascimento muito semelhante aos seus súditos, aproximam-se deles, muito mais pela educação e instrução que recebem.
Mesmo assim, eles devem ser examinados igualmente, na intenção de ver se estão acima dos seus súditos, tal como pastor divino ou no mesmo nível.


[1] Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou o fogo aos homens, contra a vontade de Zeus. Nesta versão, porém, o fogo é dádiva feita aos homens pelos próprios deuses.  (N.doT.)
[2] Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira de Hefesto é Atena, protetora dos trabalhos manuais femininos, como o bordado. (N. do T.)