sexta-feira, 3 de junho de 2011

O VERDADEIRO CHEFE ESTÁ ACIMA DAS LEIS


3.8 O verdadeiro chefe está acima das leis
A reflexão se inicia com a pergunta: em qual dessas constituições reside a ciência do governo dos homens, a mais difícil e a maior de todas as ciências possíveis de se adquirir?(292 d), uma vez que, essa é a ciência que é necessária ser levada em consideração para poder se entender que rivais devem ser afastados do Rei competente, ou seja, concorrentes que pretendem ser políticos, persuadindo a muitos de que, embora não o sejam de maneira alguma, buscam sê-lo. Nesse sentido, tal cargo não compete a todas as pessoas da cidade, apenas a quem de fato detenha a ciência real, ou seja, ao rei filósofo, isto por que conseguiu ultrapassar a sensibilidade e atingir uma aproximação maior com o inteligível, quer reinem ou não.
Por exemplo, quando se tem o governo de apenas um, de dois, ou quando muito de alguns, se é que é possível que isto se realize. O estrangeiro comenta:
— E quer governem a favor ou contra a vontade do povo; quer se inspirem ou não em leis escritas; quer sejam ricos ou pobres, é necessário considerá-los chefes, de acordo com o nosso atual ponto de vista, desde que governem competentemente por qualquer forma de autoridade que seja. Assim como aos médicos, quer nos curem contra ou por nossa própria vontade, quer nos operem, cauterizem ou nos inflijam qualquer outro tratamento doloroso, quer sigam regras escritas ou as dispensem, quer sejam pobres ou ricos, não hesitamos absolutamente em chamá-los médicos, bastando para isso que suas prescrições sejam ditadas pela arte; que purificando-nos ou diminuindo nossa gordura por qualquer modo, ou, ao contrário, aumentando-a, pouco importa, eles o façam para o bem do corpo, melhorando seu estado, e que, como médicos, assegurem a saúde dos seres que lhes são confiados. Essa é, a meu ver, a única maneira de definir corretamente a medicina e qualquer outra arte.
SÓCRATES, O JOVEM
— Certamente.
(O Político, 293 b)
Dentro desta questão, entre todas as constituições esta seria a mais absoluta e exata (Monarquia), pela qual os chefes deteriam a ciência verdadeira, tais chefes se apoiando ou não nas leis, desejados ou apenas suportados, ricos ou pobres, nada disso influenciaria diante desta forma de constituição (considerada a mais perfeita). Para encerrar este argumento diz:
ESTRANGEIRO
— É indiferente também que eles sejam obrigados a matar ou exilar alguém a fim de purificar e sanear a cidade; que exportem emigrantes como enxames de abelhas, para tornar menor a população, ou importem pessoas do estrangeiro, concedendo-lhes cidadania, a fim de torná-la maior. Enquanto se valerem da ciência e da justiça, a fim de conservá-la, tornando-a a melhor possível, e por semelhantes termos definida, uma constituição deve ser, para nós, a única constituição correta. Quanto às demais, que mencionamos, acreditamos não serem constituições legítimas, nem verdadeiras: não passam de imitações que, se produzem boas leis, é por serem apenas cópia dos melhores traços desta constituição correta, e, em caso contrário, por copiar-lhe os seus piores traços.
SÓCRATES, O JOVEM
— Tuas reflexões me parecem sensatas, Estrangeiro, sob todos os pontos de vista; entretanto, é-me difícil admitir que se deva governar sem leis.
(O Político, 293 e)
Então no próximo discurso se perguntam se tal fato deve ser levado em consideração. Será que é legítimo um governo sem leis? Porém, é apontada uma saída, claro que a legislação deve ser considerada como função do rei, mas, segundo ele o mais importante não é dar forças às leis, e sim ao homem real dotado de prudência. Pois, a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos de modos a ordenar as prescrições mais convenientes. Por um motivo bastante simples, a diversidade que há entre os homens e as ações, e por conseqüência, a permanente instabilidade das coisas humanas, automaticamente não admitem nenhuma arte, nem mesmo assunto algum, um absoluto que sirva para todos os casos e para todos os tempos. Assim:
ESTRANGEIRO
  Ora, em suma, é precisamente este absoluto que a lei procura, semelhante a um homem obstinado e ignorante que não permite que ninguém faça alguma coisa contra sua ordem, e não admite pergunta alguma, mesmo em presença de uma situação nova que as suas próprias prescrições não haviam previsto, e para a qual este ou aquele caso seria melhor.
SÓCRATES, O JOVEM
— É verdade: a lei age sobre cada um de nós, exatamente como acabas de dizer.
ESTRANGEIRO
— E não é, porventura, impossível, ao que permanece sempre absoluto, adaptar-se ao que nunca é absoluto?
SÓCRATES, O JOVEM
— Assim parece.
ESTRANGEIRO
— Por que, pois, é necessário fazer as leis se elas não são a regra perfeita? É necessário investigar por quê?
(O Político, 294 c, d)
Para responder a pergunta anterior o filósofo recorre às olimpíadas gregas, apontando que as máximas regentes adotadas para o evento, quem as dirigem, assim como, os treinadores, o fazem baseando-se em regras científicas.  Segundo tais máximas, não é necessário, considerar os pormenores dos casos individuais, ao contrário é necessário ver as coisas de um modo geral, estabelecendo, para a maioria dos casos e das pessoas, preceitos que sejam úteis para o corpo em geral. Assim o estrangeiro comenta: Acontece o mesmo com o legislador: tendo que prescrever a suas ovelhas obrigações de justiça e contratos recíprocos, jamais seria capaz, promulgando decretos gerais, de aplicar, a cada indivíduo, a regra exata que lhe convém. (Idem, 295 a).
Logo estabeleceria, antes, aquilo que fosse conveniente à maioria dos casos e dos indivíduos. Conseqüentemente de um modo geral, legislaria para cada um, por meio de leis escritas ou não, contentando-se, neste caso, em dar força de lei aos costumes nacionais. Para fechar o argumento que o governo deve estar acima das leis comenta:
ESTRANGEIRO
— Será a violência justa, por ser rico o seu autor, e injusta, por ser ele pobre? Ou seria melhor dizer que o chefe pode ou não lançar mão da persuasão, ser rico ou pobre, ater-se às leis escritas ou livrar-se delas, desde que governe utilmente? Não é nisto que reside a verdadeira fórmula de uma administração correta da cidade, segundo a qual o homem sábio e bom administrará os interesses de seu povo? Da mesma forma como o piloto, longe de escrever um código, mas tendo sempre sua atenção voltada para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a sua ciência como lei e salva tudo o que com ele navega, assim também, de igual modo, os chefes capazes de praticar esse método realizarão a constituição verdadeira, fazendo de sua arte uma força mais poderosa do que as leis. E não será verdade que os chefes sensatos podem fazer tudo, sem risco de erro, desde que observem esta única e grande regra: distribuir em todas as ocasiões, entre todos os cidadãos, uma justiça perfeita, penetrada de razão e ciência, conseguindo não somente preservá-la, mas também, na medida do possível, torná-la melhor?
(O Político, 297 b)
Com isto deixa a entender que, a massa qualquer que seja ela, jamais se apropriará perfeitamente da tal ciência e ainda ser capaz de administrar com inteligência uma cidade e que ao contrário, é um pequeno número, a algumas unidades, e uma só que é necessário pedir esta única constituição verdadeira. De modo que qualquer outra deve ser considerada imitação, reproduzindo algumas vezes os belos traços de uma bela constituição e outras vezes a desfiguram totalmente.
Como o argumento posto, diz: Vejamos: não havendo, para nós, senão uma única constituição exata, aquela a que nos referimos, sabes que as demais devem, para subsistir, procurar naquela as suas leis escritas e agir de acordo com o que hoje se aprova, ainda que não seja o mais justo (297 d). Conseqüentemente, deve-se proibir a todas as pessoas, na cidade, de transgredir as leis e punir pela morte ou pelos maiores suplícios àquele que ousar fazê-lo. Sendo este um segundo recurso que constitui um princípio mais justo e mais belo do que o primeiro mencionado. Para concluir o argumento comenta:
ESTRANGEIRO
— A meu ver, pois, as leis resultam de múltiplas experiências e cada artigo é apresentado ao povo através da orientação e exortação de conselheiros bem-intencionados. Aquele que ousasse infringi-las cometeria uma falta cem vezes mais grave que a primeira, perturbando qualquer atividade muito mais que a lei escrita.
SÓCRATES, O JOVEM
— Como não?
ESTRANGEIRO
— Portanto, em qualquer domínio em que se estabeleçam leis e códigos escritos, impõe-se, em segundo lugar, jamais permitir ao indivíduo ou à massa qualquer ato que possa infringi-los, no que quer que seja.
SÓCRATES, O JOVEM
— Exatamente. (O Político, 300 b, c)
Logo em seguida Platão começa a discussão sobre as constituições imperfeitas. No Sentido de que estas seriam simulacros, imitações o mais próximo possível das constituições consideradas verdadeiras. Assim, quem está no governo, procure uma vez estabelecidas as leis, jamais infringi-las, nem mesmo os costumes nacionais. No caso de os ricos realizarem esta imitação, tal constituição é chamada de Aristocracia, porém, se não levam em consideração as leis vigentes, será então uma oligarquia.
No entanto, se quem estiver à frente do governo for um chefe único, de acordo com as leis, imitando o chefe competente, chamamo-lo rei, sem servir-nos de nomes diferentes para os casos em que esse monarca, respeitador das leis, seja guiado pela ciência ou pela opinião. (301 b). Em situação contrária, se o tal chefe único, age sem levar em conta as leis nem os costumes, acabando por contrariar o chefe competente, pretendendo ainda violar as leis escritas, a pretexto de exigir um bem maior, quando na verdade é pura cobiça e ignorância, este deverá ser considerado como um tirano. Diz:
ESTRANGEIRO
— Eis, pois, como nasce o tirano, o rei, a oligarquia, a aristocracia e a democracia: pela aversão que os homens sentem contra o monarca único de que falamos. Recusam-se a acreditar que alguém possa jamais ser bastante digno de tal autoridade para pretender e poder governar com virtude e ciência, distribuindo a todos, imparcialmente, justiça e eqüidade, sem injuriar, maltratar e matar a quem lhe aprouver, em todas as ocasiões. Pois um monarca como descrevemos seria aclamado, regeria e governaria com felicidade por uma única constituição de absoluta retidão.
(O Político, 301 d)
Dentre as três principais constituições, Platão aponta uma como sendo a mais desagradável, porém, a melhor a ser colocada em prática. Comenta:
ESTRANGEIRO
— Que os governos de um só, de alguns, ou da multidão, constituem as três grandes constituições de que falamos no início desta enorme conversa.
SÓCRATES, O JOVEM
— É verdade.
ESTRANGEIRO
— Dividamos cada uma delas em duas partes, formando seis, e coloquemos de lado a constituição verdadeira, como sétima.
(O Político, 302 c)
Assim, como discutido, o governo de um, dá origem à realeza e à tirania, o governo de alguns, origina a aristocracia e a oligarquia, ao governo de um grande número, até então tinha sido considerado a originar a democracia, a partir, deste ponto, o filósofo divide o governo democrático em duas outras formas. Devendo ser levado em consideração que é possível governar conforme ou em desacordo com as leis, nela, assim como nas demais.
ESTRANGEIRO
— Muito bem. A monarquia, unida a boas regras escritas a que chamamos leis, é a melhor das seis constituições, ao passo que, sem leis, é a que torna a vida mais penosa e insuportável.
SÓCRATES, O JOVEM
— É possível.
ESTRANGEIRO
— Quanto ao governo do pequeno número, sendo o de "poucos", ele se situa entre a unidade e o grande número e é necessário considerá-lo intermediário entre os dois outros. Finalmente o da multidão é fraco em comparação com os demais e incapaz de um grande bem ou de um grande mal, pois nele os poderes são distribuídos entre muitas pessoas. Do mesmo modo, esta é a pior forma de constituição quando submetida à lei e a melhor quando estas são violadas. Estando todas elas fora das restrições da lei, é na democracia que se vive melhor; sendo, porém, todas bem ordenadas esta é a última que se deverá escolher. Sob este ponto de vista a que nomeamos em primeiro lugar é a primeira e a melhor de todas exceto a sétima, pois esta se assemelha a um deus entre os homens e é necessário colocá-la à parte de todas as demais constituições. (O Político, 302 e, 303 b)
Automaticamente todos aqueles que desempenham um papel nessas constituições, com exceção daqueles que possuem conhecimentos, devem ser rejeitados como falsos políticos, partidários e criadores das piores ilusões, considerados por Platão como sendo os maiores sofistas entre todos os sofistas. Fechando com isto o raciocínio de que deveriam ser separados da arte política seres como: um bando de centauro e sátiros.

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